Por
Kadu Santoro
A
ortodoxia da Igreja, blindada em seu status quo de natureza imperialista,
produzira ao longo de sua trajetória inúmeros conceitos errôneos e distorcidos
a respeito da narrativa dos livros do Gênesis e do Apocalipse (o alfa e o
ômega). Todos esses conceitos distorcidos são consequência da ideia de
acontecimentos singulares em um passado remoto que teria gerado uma criação
fixa, estática, que por sua vez conduzira à ideia do acontecimento singular de
um Apocalipse no futuro, que também tem caráter estático e fixo. Na visão
cabalística do cristianismo gnóstico, o ato da Criação (Gênesis) e o da Revelação
(Apocalipse) representam um acontecimento único contínuo, e não um evento
singular do passado ou do futuro e, portanto muito menos estático ou fixo em
determinado período. Dessa forma, a Criação está ocorrendo a todo instante,
agora, assim como o Apocalipse, em todo o seu encanto e horror.
Não
pretendo me estender em teologia e muito menos na história da igreja, porém, a
respeito do livro do desvelamento (Apocalipse), segundo a visão de João
evangelista, teria sido profecia referente a Roma, onde essa assumiria o
controle do cristianismo, e ao desenvolvimento da ortodoxia, que tentaria com
isso destruir o espírito vivo da Gnose Cristã. Dessa forma, a principal
profecia do livro do desvelamento já teria ocorrido, na medida em que o
conhecimento esotérico do cristianismo gnóstico encontra-se quase que
totalmente perdido no ocidente. E é nesse sentido que posso dizer que o
“espírito do anticristo” e a “grande besta” conseguiram com êxito realizar
muito bem a sua missão imperialista. Porém, um livro profético é muito mais do
que as situações históricas com suas circunstâncias e acontecimentos que
prediz, e a profecia em si não encontra-se “gravada na pedra”. Assim, como
revela acontecimentos que podem de fato ocorrer, a profecia revela também
princípios cósmicos com suas leis imutáveis do universo. Desse modo, a
relevância de um livro profético transcende qualquer acontecimento real que
descreve, pois todos os eventos semelhantes que acontecem no mundo estão
sujeitos aos mesmos princípios cósmicos.
O
livro do Gênesis se incumbe da descrição do processo da criação como uma
in-volução, ou seja, do processo de densificação da matéria no tempo e espaço.
Já o livro do Apocalipse descreve o ato criativo como uma e-volução. Explicando
Cabalisticamente, no nível de Da’at, essa involução e evolução (contração e
retração) são entendidas como parte do mesmo momento simultaneamente. Isso se
dá devido ao fato da fragmentação dos recipientes (Klipots) de um universo
superior, necessária para a criação do universo inferior segundo o processo de
criação, também chamado a descida do relâmpago. O mesmo acontece com a
“destruição” relatada no livro do Apocalipse. Salvo no Apocalipse, é o universo
inferior que é fragmentado proporcionando a unificação com o universo superior.
As
mensagens às sete igrejas correspondem a uma fragmentação do mundo de Assiah
(mundo da ação) para a unificação de Yetzirah (mundo da formação). A primeira
onda de destruição que vem antes dos mil anos de paz na terra, representa uma
fragmentação em Yetzirah para a unificação com Briah (mundo da criação), e o
conflito final, depois dos mil anos de paz, representa a fragmentação de Briah
para a unificação com Atziluth (mundo da emanação), que dentro da visão
cabalística cristã, essa quádrupla unificação representa a ação redentora do
processo da criação dada por completa, logo o livro do Apocalipse consiste em
um tratado cabalístico.
Esse
mesmo processo de fragmentação em um nível inferior para produzir uma
unificação em um nível superior, se repete no mistério da crucificação e
ressurreição, onde o rompimento do corpo (recipiente) nos mundos de Assiah,
Yetzirah e Briah permitem a revelação do corpo de luz (corpo glorificado
segundo os cristãos). Dessa forma, a luz é baixada no evento alegórico de
Pentecostes (forma unificadora) conforme o livro de Atos, abrindo assim caminho
para a fragmentação total dos Klipots, favorecendo com isso à unificação da luz
restaurando a unidade cósmica.
A
primeira vinda do Cristo, consiste no advento do indivíduo, enquanto a segunda
vinda (Parusia), descrita no livro do Apocalipse representa essa mesma
manifestação, só que agora no âmbito coletivo da humanidade, que podemos chamar
do grande despertar da consciência planetária, onde a humanidade deveria
elevar-se a um patamar vibratório mais elevado de consciência, semelhante ao
que Jung chama de processo de individuação.
Esse
processo de evolução da alma-ser em direção à consciência suprema (chamada
pelos judeus e cristãos consciência messiânica), trata-se de um processo ativo
individualmente e coletivamente – uma evolução do ser comum tripartido (mental
- Neshamah, emocional - Ruach e instintivo - Nephesh) ao ser supra mental ou
luminoso passando por Chaiah chegando a Yechidah (níveis transpessoais).
Através
da observação da natureza, podemos adquirir conhecimento desse processo
evolutivo porque uma nova espécie de ser sempre provém de uma espécie anterior,
e o desenvolvimento de uma nova espécie sempre ocorre interiormente e de forma
oculta antes de ser manifesto exteriormente, e o mesmo acontece com o ser supra
mental, emergindo do nosso estado atual (sono), correspondente ao crescimento
ou transformação que ocorre interiormente em oculto, porém, esse
desenvolvimento que acontece conosco é bem diferente da evolução de novas espécies
na natureza, porque todos os desenvolvimentos anteriores ocorreram através de
uma evolução inconsciente, ou seja puramente instintiva; nessa evolução, a
espécie do ser não era um agente consciente, a natureza realizara tudo em um
nível instintivo. Já o desenvolvimento do ser supra mental, só pode se dar por
meio de uma evolução consciente do ser mental, ou seja, do ser humano atual.
A
grande diferença entre o ser humano e os demais seres criados é que esse possui
a capacidade de desenvolver-se conscientemente e de evoluir para uma nova
condição de ser. Essa nova condição, ou paradigma é prefigurada na imagem
arquetípica dos grandes avatares iluminados (Cristo, Buda, Krishna, Asclépio,
Mithra, Hórus entre outros) presentes em todas as culturas do planeta.
O
mais impressionante, é o fato de que atualmente, certamente mais do que em
qualquer outra época passada da história humana, possamos compreender como uma
raça de seres inteligentes, dotados de uma consciência arbitrária e temporal
está a caminho da autodestruição por não querer atuar a partir de um nível
superior de consciência. A esse princípio inerente autodestrutivo, podemos simbolizar
com a ação de forças malignas (presentes dentro de nós também). No livro do
Apocalipse, essa força contrária, ou também podemos chamar de um arrasto
kármico planetário para trás, é denominado de a “grande besta”, ativada pelo
“anticristo”. E quem seria esse anticristo? Nada mais do que aquele que realiza
um caminho contrário ao de um Cristo ou de um Buda ou de qualquer avatar
correspondente a sua cultura, que ao invés de mergulhar diretamente no que é,
fica cogitando a respeito do que deveria ser. Logo, podemos dizer que o
anti-cristo é um anti-Ser. Por exemplo: seguir uma religião consiste em um
movimento anticristo, pois nega a experiência individual experimentada por um
Cristo. Porém, acabamos por vez acreditando que o anticristo é alguém que se rebela
contra a Igreja, mas o anticristo na verdade é aquele que toma uma atitude
contrária ao Ser, esse que não consegue encontrar a vida no Agora e fica
planejando para o futuro. Em outras palavras, o pensamento guiado pelo
intelecto e o ego é que é o autêntico anticristo. Qualquer um pode ser um
anticristo sem ter nunca se aproximando de nenhuma religião. Porque o
anticristo tipifica o movimento da inconsciência humana. A Parusia, ou a volta
de Cristo consiste simbolicamente no retorno de mais uma oportunidade de se
atingir o Ser fora das garras da tradição, e é por isso que a maioria das
pessoas estão abandonando as religiões com suas tradições e dogmas, porque toda
moral religiosa está perdendo o sentido ser.
Pegamos
um exemplo nas escrituras do Novo Testamento, onde Pedro, prestes a ser
executado declara: “Não sou digno de
morrer como meu senhor!” e acaba sendo crucificado de cabeça para baixo. O
que parecia ser um ato de humildade de Pedro, na verdade não era, pois em seus
talvez oitenta anos de vida andando no sentido contrário, para fora de si
mesmo, seria possível que ele acabasse adquirindo um pouco de consciência
devido ao fato de tanto errar. E foi como ele concluiu na hora de sua morte,
que, de fato, ele não era um homem de Ser como Cristo. Portanto, não sendo um
homem de Ser Crístico (desperto), ele se negava a morrer como um que fosse.
Esse foi com certeza o momento mais autêntico de Pedro, em que ele conseguira
realmente aceitar a sua própria realidade, pois antes vivia no sono e na
hipocrisia, e isso remete simbolicamente morrer com a cabeça para baixo,
voltada para a terra (Malkhut), pois sempre vivera nos pensamentos daqui e não
descobriu o seu Ser.
Se
levarmos esse quadro para a Igreja de Pedro (Católica Romana), ela tem essa
característica, é algo desenvolvido perifericamente, possuindo uma hierarquia
quase militar, onde alguém é mais poderoso ou menos importante que outro
alguém. Assim, Jesus O Cristo é visto como alguém que encontra-se
figurativamente sentado à direita de Deus e Pedro possui as chaves de acesso a
este mundo metafísico, onde na verdade, tudo isso já fora previsto e imaginado
pelo pensamento religioso.
Percebendo
que Pedro é um moralista judaizante, que não possui nenhuma conexão com o Ser,
Cristo decide testá-lo perguntando: “Pedro,
quem tu dizes que EU SOU?” e Pedro responde: “É como um anjo na retidão!”, e essa fala demonstra como Pedro não
se encontrava em contato com o Ser, mas sim, o que pensava que deveria ser.
Somente um homem que não tem a experiência consigo próprio, com seu Ser em
essência poderia dar uma resposta dessa a um iluminado. Na verdade, ele ouvira
de Jesus, o que O Cristo estava perguntando, o que o Ser está indagando. No
entanto, ele responde como um homem intelectual mental e não de Ser. Um homem
de Ser não diria nada, pois um homem de Ser saberia que essa pergunta é um
truque do pensamento. Um Sócrates ou um Buda não cairia numa pergunta dessas,
pois diria que só sei que nada sei, e isso demonstrava como Sócrates era um
homem de Ser, e não apenas um filósofo como os outros que viviam dando voltas e
mais voltas no intelecto. Os mestres Zen também apreciam muito usar esses
truques linguísticos com seus neófitos, e isso também nos mostra como Jesus se
aproximara do pensamento Zen, pois o Zen consiste em um estado concreto de
consciência onde o mistério e a beleza da vida são percebidos simultaneamente
sem mediações de palavras ou conceitos.
A
respeito do grande conflito final no livro do Apocalipse, chamado Armagedon, na
verdade representa a luta dentro de nós mesmos contra a inclinação violenta e
contrária da nossa natureza bestial, onde essa sendo encarada de forma
coletiva, podemos denominar de a grande besta, e isso só se converte em
conflito externo quando não solucionamos interiormente esse conflito. O
egoísmo, a ganância, a cobiça e o temor-ódio são algumas manifestações
primárias dessa inclinação maligna, que nos levam a explorar, a oprimir e a
cometer todo tipo de violência entre nós mesmos, e que geram a grande violência
das guerras. Ao invés de ser um só acontecimento, o Armagedon é uma tendência
cada vez mais intensa e radical desse conflito interno externalizado no mundo.
Desse modo o juízo não vem de fora, mas de dentro de cada um e aí escolheremos
o caminho da vida ou o da morte.
Dentro
do esquema arquetípico da Árvore da Vida, a questão é a seguinte: se podemos
nos elevar ao nível de Tipheret ou se vamos permanecer presos aos sephirots
inferiores, isolados da presença do EU SOU dentro do nosso coração. Para isso,
é preciso dizer algo em relação às nossas expectativas diante de tempos
potencialmente escuros, pois esses são sem dúvida os melhores momentos para nos
elevarmos de forma consciente, ou seja, conscientes da realização espiritual de
Da’at – as coisas se manifestam como esperamos que aconteçam.
O
terror do Apocalipse surge de nossa resistência ao despertar da consciência
crística – da nossa incapacidade para superar o egoísmo, a cobiça e o temor por
meio do cultivo da paz, da esperança e do amor. Assim, diante de tempos de
grandes tribulações, é uma visão de esperança a que os despertos devem ter, não
apenas para si próprios, mas para com toda a humanidade. Isso conduz a um esclarecimento e um entendimento
a respeito da alegoria da segunda vinda na visão dos gnósticos, que consiste no
início do despertar da consciência messiânica em grandes grupos de seres
humanos. A segunda vinda não deve ser vista literalmente como um retorno físico
de Jesus Cristo, mas como a consciência messiânica despertando coletivamente na
humanidade, promovendo o renascimento de uma nova era.
Para
finalizar, segundo a Cabala, do Gênesis ao Apocalipse, toda essa jornada é a
representação metafórica e alegórica (muitas vezes utilizando-se de eventos
históricos) da jornada de cada um de nós através do autoconhecimento até o
despertar da nossa verdadeira essência, que é Luz.
Bibliografia:
MALACHI,
Tau – Cristo Cósmico – A Cabala do Cristianismo Gnóstico – Ed. Pensamento.
OUSPENSKY,
P. D. – Fragmentos de um ensinamento desconhecido – Ed. Pensamento
TRINDADE,
Rammyl – Jesus não era cristão – Ed. Besouro Box
LÉVI,
Éliphas – Os mistérios da Cabala ou A Harmonia Oculta dos Dois Testamentos –
Ed. Pensamento
HALEVI,
Z’ev Bem Shimon – O Caminho da Cabala – Ed. Ágora