sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
História e desenvolvimento do Orfismo no mundo grego
De acordo com a lenda, Orfeu foi um poeta da Trácia que cantava e tocava a lira tão bem que os animais selvagens ficavam mansos, as árvores se curvavam, e até as pedras passavam a segui-lo. Orfeu juntou-se aos argonautas na jornada em busca do Velocino de Ouro, e era sempre capaz de apaziguar conflitos que surgiam entre os participantes dessa aventura. Na viagem de volta para a Grécia, Orfeu salvou seus companheiros ao suplantar com seu canto a voz das sereias que haviam causado o naufrágio de diversas embarcações.
Quando sua mulher, Eurídice, morreu envenenada pela picada de uma cobra, Orfeu, desesperado, desceu ao mundo dos mortos, onde seu canto e sua música comoveram Hades, que lhe permitiu trazer Eurídice de volta. A única condição imposta por Hades a Orfeu foi não olhar para trás até que tivessem atingido a superfície. Porém, ao ver o sol, o herói, comovido, vira-se para sua amada, que o seguia, e a perde para sempre.
Logo após seu retorno à Trácia, Orfeu encontrou a morte ao ser esquartejado pelas Mênades, seguidoras do deus Dioniso. Há diversas explicações para o episódio. Dioniso pode ter encorajado as Mênades a matar Orfeu por vingança, uma vez que o cantor o havia tratado de maneira desrespeitosa. Ou talvez cada uma das Mênades quisesse guardar para si um pedaço do artista. A cabeça de Orfeu foi atirada no Rio Hebros, onde flutuou até o Mar Egeu, chegando à Ilha de Lesbos, onde foi sepultada com as devidas cerimônias. Diz-se que, em agradecimento, Orfeu dotou o povo da ilha de grande talento musical.
De acordo com a lenda, Orfeu aprendeu a derrotar a morte em sua jornada ao mundo dos mortos. Então ele transmitiu esse conhecimento a outras pessoas, por meio de rituais de iniciação.
A partir do século VI a.C., desenvolveu-se na Grécia um culto que invocava Orfeu e rejeitava todas as religiões e toda ordem social vigentes. Os órficos, como eram chamados os seguidores de Orfeu, eram muito diferentes dos adeptos da religião tradicional. Uma das diferenças diz respeito à sua alimentação: conforme o testemunho do poeta grego Hesíodo (700 a.C.), autor da Teogoma, o sacrifício e a ingestão de carne representavam uma divisão nítida entre os seres humanos e os deuses imortais, que criam laços entre todos os participantes dos sacrifícios rituais que antecedem as refeições. Os órficos, ao contrário, recusavam-se a comer carne, assim expressando sua oposição a todo um conjunto de valores religiosos. Tinham, também, um estilo próprio de vestir, como por exemplo o uso de mantos brancos.
A religião órfica se baseava em uma revelação que se opunha às noções religiosas transmitidas por Hesíodo, sobre a origem do universo. Enquanto na teogonia o mundo se origina do caos e do vazio, os órficos acreditavam que ele tinha emergido de um ovo primordial - uma imagem que corporificava os princípios da unidade e da abundância. Desse ovo nasceu Eros, o deus do amor, da harmonia original, capaz de promover a reconciliação entre opostos.
No que diz respeito ao nascimento dos deuses do Olimpo, a versão dos órficos concordava com a de Hesíodo em muitos pontos, mas divergia sobre a origem da humanidade. De acordo com os ensinamentos órficos, o aparecimento dos seres humanos era o resultado de um crime dos Titãs, os filhos de Urano (o céu) e de Gaia (a terra). Os Titãs haviam matado e devorado o jovem deus Dioniso. Para puni-los, Zeus, o deus supremo do Monte Olimpo, desferiu uma série de raios para destruir os Titãs. De suas cinzas, surgiram os primeiros homens e mulheres. Como descendentes dos Titãs, os humanos eram violentos e maldosos; por outro lado, traziam em si, também, a essência de Dioniso. O objetivo dos órficos era libertar a alma dionisíaca da prisão do corpo material. Isso poderia ser alcançado através de rituais de purificação e de uma vida baseada no ascetismo.
O orfismo, no entanto, não obtivera grande popularidade. À medida que vagavam de cidade em cidade, os seguidores de Orfeu eram vistos como pessoas suspeitas. O filósofo Platão os chamou, desdenhosamente de charlatães que prometiam a salvação a pessoas ingênuas.
Os ensinamentos do filósofo e matemático Pitágoras mostram certos paralelos com a religião órfica, mas eles também não eram vistos com bons olhos por muitos. Sabe-se que, naquela época, circularam diversos textos cujo conteúdo era uma apresentação ao orfismo, mas infelizmente nenhum deles chegou aos dias de hoje.
Placas de ouro encontradas em túmulos no sul da Itália e na Ilha de Creta fornecem indícios sobre o modo de vida dos órficos. Essas placas tinham por finalidade guiar a alma do morto até o outro mundo, e ostentam inscrições que lhe prometem o retorno ao estado original da existência. É provável que os órficos acreditassem na reencarnação, e que um certo nível de perfeição pudesse ser alcançado humanos a medida que sua alma fosse passando de corpo em corpo.
Entre 400 e 200 a.C., o Orfismo perdeu grande parte de sua influência como movimento religioso. Um certo número de filósofos gregos, no entanto, continuou a preservar os seus ensinamentos, dando origem a um movimento místico, cuja influência pode ser acompanhada ao longo da Antiguidade clássica e era ainda notável por volta de 100 a.C.
Por ter se propagado de forma tão extensa, o Orfismo pode ter exercido alguma influência sobre o Cristianismo. Os paralelos são impressionantes: Orfeu venceu a morte, trouxe ao mundo uma revelação e fundou uma doutrina de salvação das almas. Imagens de Orfeu têm sido encontradas em mosaicos e pisos de residências, indicando que o dono da casa era um homem culto e apreciador das artes. A imagem de Orfeu também tem sido encontrada em ataúdes, onde talvez não represente a promessa de ressurreição, mas a esperança de uma vida melhor no além-túmulo. Nas pinturas encontradas em catacumbas dos primeiros cristãos, que eram obrigados a praticar sua religião às escondidas, Cristo aparece simbolizado pela figura de Orfeu.
Fontes:
Balthazar, Jean et al (redatores). Os últimos mistérios do mundo. Rio de Janeiro: Reader’s Digest, 2003.
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