ENTREVISTA COM O PROF. ANTONIO DE MACEDO
1) O que é a Esoterologia Bíblica, afinal? Como o Senhor chegou até a mesma? E como tem sido sua experiência de professor desta disciplina em uma universidade (não esquecendo a pouca simpatia do meio acadêmico tradicional quanto ao tema “Esoterismo”)?
A Esoterologia é uma ciência histórica e etno-sociológica que resultou de estudos sérios, em meios académicos, das correntes esotéricas e místicas, consideradas como realidades histórico-sociológicas, que, independentemente da sua presumível «verdade» ou «falsidade», interferiram e interferem nos respectivos contextos culturais e sociais, afectando formas e conteúdos literários, artísticos, filosóficos, educacionais, comportamentais, etc. O seu objecto de estudo é o esoterismo, definido como corpus de textos que constituem a expressão dum certo número de correntes espirituais, na história Ocidental desde a Idade Média até aos nossos dias, ligadas entre si por uma determinada «forma de pensamento» (correspondência, mediadores, transmutação, transmissão, etc.) que subjaz a essas correntes — e, de acordo com esta definição, a Esoterologia faz parte dos currículos académicos de certas universidades, como a Universidade de Paris (França), as Universidades de Amesterdão e Utrecht (Holanda), a Universidade da Califórnia (E.U.A.), etc., bem como numa secção do Departamento de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa (Portugal). Alguns dos mais importantes esoterólogos da actualidade são, por exemplo, os professores catedráticos Antoine Faivre (França), Wouter J. Hanegraaff (Holanda), Pierre A. Riffard (Mauritânia), Arthur Versluis (E.U.A.), Roland Edighoffer (França), Karen-Claire Voss (E.U.A, Turquia), etc.
Especificamente, a Esoterologia bíblica debruça-se sobre os aspectos referidos atrás mas respeitantes apenas aos contextos bíblicos, investigando não só os conteúdos de carácter esotérico que se podem detectar na própria Bíblia, mas também as interpretações esotéricas que historicamente têm sido levadas a efeito sobre os livros bíblicos pelos mais diversos autores e correntes místicas e espirituais ao longo dos séculos, até à actualidade.
2) Na sua obra “Esoterismo da Bíblia”, o Senhor comenta em determinada passagem sobre as distorções e equívocos engendrados por livros populares como “O Código da Vinci” (agora também filme), porquanto este tipo de literatura amiúde parte de uma interpretação crua e literal dos documentos apócrifos, além de ignorar a fidelidade aos documentos históricos disponíveis, como é nítido na idéia do “casamento” de Jesus e Maria Madalena. O Senhor poderia falar um pouco disso?
Os muitos leitores d’ O Código Da Vinci com quem tenho contactado exprimem naturalmente as mais diversas opiniões, umas pró e outras contra, mas notei que um grande número deles acreditava que a investigação do autor Dan Brown para o seu livro tinha sido conduzida com honestidade e seriedade com base em documentos históricos, e, por outro lado, que se estaria agora a assistir a um processo de desmistificação da imagem de Jesus Cristo.
Ora, na verdade o processo de «desmistificação» de Jesus Cristo não é de agora, nem sequer apenas do passado século XX: é coisa que tem vindo a durar há cerca de 2.000 anos… Os primeiros foram os judeus que nos textos rabínicos e talmúdicos dos séculos II e III d.C. puseram a circular a história de que Maria atraiçoara José com um soldado romano chamado Pandira ou Panthera, e portanto Jesus seria «filho de Panthera» (em hebr.: Yeshuben Panthira). Daí a confusão dos evangelistas, diziam os judeus, que confundiram as palavras gregas huios pantherou (filho de Pantera) com huios parthenou (filho duma virgem). Existem diversos textos do Talmude da Babilónia, como por exemplo os tratados ‘Aboda Zara, o Talmud Shabbat, o Sanhedrin, etc. onde se insiste nessa atribuição do nascimento de Jesus ao adultério de Maria.
Por outro lado, os autores pagãos dos primeiros séculos do Cristianismo, disseram o pior possível de Jesus e dos cristãos, como os filósofos Celso (Discurso Verdadeiro), Porfírio (Contra Christianos), Plotino (Enneadas Livro II, tratado IX), todos do séc. III, ou ainda Juliano (Contra Galilaeos), do séc. IV. A principal acusação era que Jesus seria um baixo mágico e um charlatão e que a falsa ressurreição não foi mais que um embuste dos seus sequazes (para não lhes chamar discípulos…), e portanto ou morreu mesmo e alguém roubou o corpo, ou então não morreu, e fingiu que ressuscitou porque se curou das feridas (há casos, embora raros, documentados por historiadores greco-romanos, de crucificados que sobreviveram e curaram-se dos ferimentos). Outros limitavam-se a acusar os cristãos de terem fabricado um Jesus mítico à semelhança das divindades pagãs, tais como Osíris, que morreu e ressuscitou, Dionysos, que também morreu e ressuscitou, filho da virgem Semele e do Pai dos deuses, Zeus, ou ainda Mithra, muito venerado no mundo romano, também filho da deusa-virgem Anaita, conhecido mito solar celebrado a 25 de Dezembro — data que a Igreja aproveitou; etc. Já no século II d.C., os autores patrísticos Justino Mártir (Diálogo com Tryphon, Apologia I e Apologia II) e Ireneu de Lião (Adversus Haereses) tiveram de combater essas «calúnias».
Ao longo dos séculos o processo de denegrir e aviltar a imagem de Jesus, ou então ajeitá-la aos gostos e preferências de cada época, não é novo e tem passado por diversas fases. Uma das acalmias nesse processo decorreu entre os séculos IV e XVII devido ao forte domínio e à preponderante intolerância da Igreja na cultura ocidental, em que o «Jesus Filho de Deus e duma Virgem Mãe» era simplesmente indiscutível. Mas as dúvidas e as críticas do «Jesus histórico» reavivaram-se com o Iluminismo filosófico a partir do séc. XVIII. Como vimos atrás, a ideia de que Jesus sobreviveu à crucificação e fingiu que ressuscitou já é muito antiga, e não apenas uma «descoberta» recente dos autores d’O Código Da Vinci e doutros textos. Um dos livros que causou mais sensação na sua época chama-se The Unknown Life of Jesus Christ e foi publicado em Chicago em 1894, da autoria do judeu russo Nicolas Notovitch. Nesse livro o autor descreve uma viagem que fez ao Oriente em 1870; tendo chegado à Índia em 1887, Notovitch visitou o famoso Templo Dourado de Amritsar; e num lugar chamado Mulbek encontrou um Lama que lhe relatou uma tradição de um certo Issa (ou Jesus) que tinha chegado à Índia em meados do séc. I e aí tinha pregado e feito curas. De investigação em investigação, Notovitch concluiu que Jesus conseguira sobreviver à crucificação e fugira para a India, onde foi reverenciado e morreu idoso…
Jesus, de facto, tem as costas largas, pois cada época redescobre um novo Jesus, ou uma nova faceta de Jesus, com base em autênticos ou supostos documentos, e com base também nas correlativas especulações. O Prof. Philip Jenkins, catedrático de História e Estudos Religiosos na Universidade de Pensilvânia, no seu livro Hidden Gospels (Oxford University Press, 2001), cuja leitura vivamente recomendo, descreve todas essas especulações ao longo dos tempos, chamando especialmente a atenção para a descoberta de manuscritos antigos, de tipo mais ou menos gnóstico e classificados pela ortodoxia romana como apócrifos, desde o famoso tratado Pistis Sophia, do século II, encontrado em 1773 num alfarrabista de Londres, passando pelos códices coptas desenterrados num primitivo cemitério cristão, no Egipto, em 1896 (Berolinensis Gnosticus), e outros, até aos mais recentes, como a biblioteca gnóstica de Nag Hammadi (1945) ou o ainda mais recente Evangelho de Judas (1978).
Em vários destes textos já se abordava o aspecto da preponderância de Maria Madalena na vida de Jesus, como discípula predilecta e privilegiada: Pistis Sophia, Evangelho de Maria (Madalena), Evangelho de Filipe, Evangelho de Tomé, etc. — sendo que este último também refere Salomé com um papel semelhante.
Finalmente, em 1982 foi publicado um livro que também levantou celeuma na época (já lá vão 25 anos!), The Holy Blood and the Holy Grail («O Santo Graal e a Linhagem Sagrada»), de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, onde os autores «demonstram» que Jesus sobreviveu à crucificação, casou com Maria Madalena, teve filhos, emigrou para França e a sua descendência deu origem à dinastia Merovíngia… com todos os plots secretos que daí derivaram, desde os cavaleiros templários, passando pela heresia cátara, mais os bastidores do fantasioso «Prieuré de Sion» e seus esforços para restaurar o poder político dos descendentes Merovíngios, depostos há mais de 1300 anos. Ora foi precisamente nos argumentos deste livro de quase 500 páginas que o autor d’ O Código Da Vinci se inspirou quase palavra por palavra, somente lhe entretecendo uma empolgante intriga policial.
Mas… será de se levar a sério?
Os «documentos históricos» utilizados pelo autor do Código são sobretudo os escritos não-canónicos utilizados por certas comunidades jesuânicas nos três ou quatro primeiros séculos do Cristianismo, e, em si, não são mais nem menos «históricos» do que os textos canónicos do Novo Testamento, que se compõem de quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João), um livro de actos, várias epístolas de Paulo e outros apóstolos — autênticas ou falsamente atribuidas —, e um apocalipse.
Que no século I já circulavam muitos evangelhos ou «histórias» de Jesus, e não apenas os quatro que ficaram na Bíblia, é um facto que o próprio evangelho de Lucas reconhece e testemunha logo nas suas primeiras linhas (Lucas 1, 1-3). Para além do famoso e primitivo Evangelho Q, reconstituído pacientemente pelos estudiosos bíblicos após anos e anos de trabalho, temos conhecimento de que eram utilizados muitíssimos outros, dezenas ou mais, aceites e venerados em diferentes ekklêsiai e/ou círculos iniciáticos cristãos. A maior parte deles perdeu-se, ou deles só restam escassos fragmentos; o conhecimento que deles temos deriva não só das referências (nem sempre fidedignas) feitas pelos autores eclesiásticos da Patrística, mas também pela descoberta de manuscritos, encontrados em velhas bibliotecas, em alfarrabistas, em cemitérios, em terrenos escavados ou em mosteiros, sobretudo a partir do séc. XVIII, como referi atrás, e principalmente pela descoberta arqueológica da preciosa biblioteca gnóstica de Nag Hammadi, ocorrida em finais de 1945 no Alto Egipto, e que permitiu que se recuperassem 53 importantes tratados gnósticos dos séculos II a IV.
Seja como for, teremos sempre de levar em conta que tanto esses textos «apócrifos» como os evangelhos canónicos não tinham uma preocupação historicista, mas uma intenção mistérica e iniciática, ou então teológica — eram na verdade rituais iniciáticos e/ou encenações litúrgicas que têm de ser interpretados à luz dos princípios da Esoterologia Bíblica ou da Teologia e não da historiografia convencional. Por isso é preciso o maior cuidado quando se pretende tomar à letra o que neles se contém, pois mais importante do que o sentido literal, é o sentido espiritual, como dizia Paulo: «A letra mata, porém o espírito é que vivifica» (2 Coríntios 3, 6).
Vejamos um dos casos que mais especulações tem provocado, o da preferência dada por Jesus à discípula Maria Madalena, tal como vem relatada nalguns dos apócrifos, como os citados Pistis Sophia, o Evangelho de Filipe ou ainda o Evangelho de Maria (Madalena), já para não falar nos canónicos, nos quais Maria Madalena é sempre a primeira, ou das primeiras, a beneficiar da aparição do Cristo ressuscitado.
No Evangelho de Filipe, que faz parte dos códices encontrados em Nag Hammadi, há uma descrição dos principais ritos iniciáticos da respectiva Escola de Mistérios: o próprio autor do evangelho chama «mistérios» a esses ritos e signos simbólicos, que ele enumera e descreve, ainda que nem sempre de forma clara: baptismo, unção, eucaristia, redenção e câmara nupcial («matrimónio místico» ou «boda alquímica» do Pneuma-Espírito-Superior com a Psique-Corpo Anímico- Inferior).
A instrução iniciática era feita «de boca a boca», ou seja, por transmissão oral secreta de Mestre a discípulo, por isso há tantas referências simbólicas ao «beijo» em quanto forma de transmissão de conhecimento secreto nos variados textos gnósticos, nos quais se diz, por exemplo, que «os Iniciados engravidam mediante um beijo, e dão à luz» (Ev. de Filipe), ou a iniciação gnóstica simbolizada pelo beijo na boca que Jesus dá a Tiago, revelando-lhe «coisas que os céus não conheceram» (II Apoc. de Tiago), ou ainda, e de acordo com o mesmo princípio, os «beijos na boca» que Jesus dava a Maria Madalena registados no evangelho de Filipe.
Por conseguinte, o «casamento» de Jesus com Maria Madalena, e o simbolismo de ela ter «engravidado» por obra de um «beijo» do Mestre, ficando «prenhe» de Gnose, é um facto místico e esotérico perfeitamente enquadrável no simbolismo das correntes gnósticas e esotéricas do cristianismo primitivo, e respectivos círculos iniciáticos (Matrimónio Místico do Eu superior com o Eu inferior), e não um evento cruamente biológico e historicista tal como tem dado azo a inúmeras e fantasiosas especulações. Aliás, os próprios gnósticos dos séculos II e III em cujos textos Dan Brown diz ter-se inspirado, ficariam horrorizados com a blasfémia de se pensar sequer que o simbolismo iniciático da Gnose pudesse ser entendido como um casamento físico entre o Mestre e algumas das suas discípulas…
3) O esoterólogo Pierre Riffard, alude em seu livro “O Esoterismo: uma antologia” ao fato da Igreja Católica não ser contrária ao Esoterismo em si, mas ser explicitamente contra alguns esoterismos em particular, considerados anti-católicos (rosacruz, maçonaria, teosofia, antroposofia, etc.). Pressupondo estar correta a asserção riffardiana, quais fatores ajudariam a compreender a ambiguidade desta relação Igreja-Esoterismo, na opinião do Senhor?
Antes de mais nada, convém deixar bem claro que a generalidade dos teólogos cristãos (católicos ou protestantes) consideram que a abordagem esotérica da Bíblia é uma abordagem ilegítima, e que qualquer método ou sistema esotérico de interpretar a Escritura contraria frontalmente as próprias formas e conteúdos bíblicos porque, segundo a teologia da Igreja, não há nada de secreto ou oculto nos versículos bíblicos, e muito menos nos ensinamentos de Jesus como ele próprio afirma: «Eu falei francamente [gr. parrêsiai, abertamente] ao mundo, eu sempre ensinei na sinagoga e no templo onde concorrem todos os judeus, e no oculto [gr. en kryptôi] não falei nada» (João 18, 20).
Para a teologia católica romana (e também protestante) a busca de significados espirituais profundos ou esotéricos nas passagens bíblicas constitui uma hermenêutica abusiva, e por isso mesmo não surpreende — segundo os teólogos — que os diversos intérpretes esotéricos apresentem contradições irreconciliáveis nas suas interpretações de específicos versículos bíblicos, visto que nenhuma autoridade individual, seja a dos diferentes esoteristas ou outros quaisquer intérpretes, se pode sobrepor à autoridade da própria Escritura, tal como explicita o teólogo Ron Rhodes no seu artigo “Esotericism and Biblical Interpretation” (Christian Research Journal, Winter 1992, p. 28).
Tanto quanto julguei entender, o argumento de Pierre A. Riffard incide mais sobre a forma enviesada como a Igreja em certos casos lida com as situações incómodas, e Riffard estabelece, e bem, uma distinção entre o mistério e o segredo: a Igreja aceita o mistério, mas rejeita o segredo, tal como ele diz no seu livro: «…o esoterismo não é fustigado [pela Igreja] senão de forma indirecta […]. Que vemos nós? O Index librorum prohibitorum contempla a heresia, a irreligião, a superstição, o erotismo… mas não o esoterismo. Quando a Igreja condena a maçonaria, não condena o seu esoterismo, uma vez que a Igreja apenas conhece uma maçonaria exotérica, ela não condena o mistério, mas sim o segredo, como o segredo de qualquer associação clandestina» (L’ésotérisme: Qu’est-ce que l’ésotérisme? Anthologie de l’ésotérisme occidental, p. 24). Nem pode ser de outro modo, visto que a interpretação verdadeira da Escritura é uma prerrogativa e um magistério que a Igreja recebeu dos apóstolos (por isso a Igreja se auto-denomina apostólica) e deles não se pode desviar; qualquer outra interpretação, nomeadamente de tipo esotérico, será sempre condenada pela Igreja como ilegítima. Um dos maiores teólogos portugueses, o professor catedrático Joaquim Carreira das Neves, dedica vários textos seus, importantes, a este assunto, por exemplo no seu livro Jesus de Nazaré, Quem És Tu? (todo o capítulo: «Jesus foi um esotérico?», pp. 242-249), ou o artigo «A Bíblia como História frente ao Esoterismo» (na revista Didaskalia, XX, 1, 1990, pp. 167-188), onde desenvolve claramente a posição da Igreja rejeitando em absoluto o carácter esotérico dos conteúdos bíblicos bem como as interpretações esotéricas que os vários esoteristas têm feito deles ao longo dos séculos.
Pese embora as objecções eclesiais que os teólogos possam argüir contra o Esoterismo bíblico, argumentando que «a Sagrada Escritura é uma literatura religiosa funcional», e não oculta ou de significados profundos, e que «Jesus não era um apocalíptico que falasse por enigmas» (Jesus de Nazaré, Quem És Tu?, pp. 243 e 245), a verdade é que tanto a Escritura judaica (Antigo Testamento) como os textos do Novo Testamento contêm inúmeras passagens susceptíveis de diferentes níveis de leitura: a «leitura literal», a «leitura teológica», a «leitura esotérica», etc. Como é óbvio, estas diferentes leituras conduzem a diferentes hermenêuticas; já as escolas rabínicas dos antigos judeus referiam os aspectos misteriosos, secretos e esotéricos de um certo número de livros da Escritura, proibindo mesmo o acesso a alguns deles (Génesis 1, Ezequiel 1 e 40-48, Cântico dos Cânticos, etc.), só os autorizando a adultos devidamente preparados e instruídos. Por sua vez o Targum, enquanto interpretação feita no Templo das leituras litúrgicas da Escritura hebraica, visava sobretudo trazer à luz o sentido oculto, ou esotérico, reconhecidamente existente na mesma Escritura.
Na hermenêutica cristã primitiva distinguiu-se o gigantesco Orígenes (sécs. II-III): ele considerava que a Bíblia fala uma linguagem de símbolos e que é crucial desvendar o «mistério último» contido cripticamente na Escritura. Foi figura preponderante na Escola de Alexandria, que preconizava o método alegórico para a hermenêutica bíblica, no que se opunha à Escola de Antioquia, que defendia o método histórico e literal. Escusado será dizer que foi esta última que venceu e preponderou na chamada «Grande Igreja», oficializada e imposta para todo o império romano por Constantino e sobretudo por Teodósio, no século IV. Em consequência, as teses de Orígenes foram condenadas no II Concílio de Constantinopla do séc. VI, que homologou os famosos «XV Anátemas Contra Orígenes».
Antes de concluir este item, vale a pena chamar a atenção para o seguinte:
Dos quatro evangelhos canónicos, o de Marcos é o mais antigo, o mais próximo das primitivas comunidades, ou ekklêsiai, iniciáticas cristãs e portanto o mais esotérico — sobretudo se considerarmos o fragmento desse evangelho descoberto pelo Prof. Morton Smith em 1958 no mosteiro cristão bizantino de Mar Saba, em Israel, e divulgado em dois livros seus, em 1966 e 1973. Para além duma inequívoca cerimónia iniciática cristã referida nesse fragmento, o próprio evangelho de Marcos tal como chegou até nós, nas Bíblias correntes, não deixa lugar a dúvidas quanto ao esoterismo dos ensinamentos de Jesus: Marcos insiste na ideia de que existia um círculo iniciáticio interno (os Doze) que podia ter acesso ao conhecimento profundo, em contraste com as multidões ( = «os de fora»: gr. ‘oi exô, ou seja, os profanos) às quais só se poderia falar em parábolas e comparações: «E dizia-lhes [aos discípulos]: A vós, foi-vos dado [conhecer] o mistério do Reino de Deus, mas aos de fora tudo se dá em parábolas» (Marcos 4, 11); «E com muitas parábolas semelhantes lhes falava a palavra [às multidões], segundo podiam entender; mas privadamente [gr. kat’idian] aos discípulos explicava tudo» (Marcos 4, 33-34). Muitos outros exemplos se poderiam aduzir, limitar-me-ei a apresentar mais um de carácter protocabalístico (Marcos 8, 16-21), e tem a ver com os números de pães e peixes, e o seu simbolismo numerológico, a propósito do milagre da multiplicação dos mesmos: o próprio Cristo chama a atenção para esses números, e obriga os discípulos a repeti-los: 5, 7 e 12, dizendo: «A vossa mente não alcança, nem entendeis?» (Marcos 8, 17), e perante a obtusidade deles surpreende-se como é possível não verem o mistério oculto nessa numerologia, e repete: «Ainda não entendeis?» (Marcos 8, 21).
Ora, isto vem a propósito duma frase do evangelho de João, citada mais atrás, proferida por Jesus e utilizada pela Igreja para tentar provar que Jesus não era um esotérico: «Eu falei francamente ao mundo, eu sempre ensinei na sinagoga e no templo onde concorrem todos os judeus, e no oculto não falei nada» (João 18, 20). Esta frase é dita quando Jesus é preso pelos guardas do Templo a fim de ir a julgamento.
O evangelho de Marcos, muito anterior ao de João, refere a forma textual primitiva dessa frase: «Todos os dias estava no templo convosco ensinando, e não me prendestes» (Marcos 14, 49). O evangelho de Marcos terá sido redigido por volta do ano 70 d.C., ao passo que a redacção final de João é datável de perto do ano 100 d.C. O redactor tardio de João acrescentou «falei francamente, ou abertamente [gr. parrêsiai]», e insiste que nada disse «em oculto [gr. en kryptôi]». Trata-se obviamente dum acrescento proto-ortodoxo, de tipo eclesiástico, para acentuar o carácter «aberto» da doutrina, em contraste com o carácter oculto das outras comunidades iniciáticas, gnósticas ou não-gnósticas: a partir da segunda metade do século I, e sobretudo na viragem do século I para o século II, e seguintes, acentuou-se a tendência proto-ortodoxa que compreendeu que a melhor maneira de expandir a doutrina era «exoterizá-la», torná-la aberta e sem segredos e ao alcance de todos, e os «mistérios» deixaram de ser iniciáticos para serem apenas verdades reveladas que ultrapassam os poderes e as capacidades da razão natural — como o mistério da Imaculada Concepção, o mistério da Ressurreição, o mistério da Santíssima Trindade ou o mistério da Transubstanciação, mistérios esses que só podem ser aceites pela fé, e não entendidos pela gnose (conhecimento). Com isto desaparecia a exclusividade elitista dos círculos iniciáticos e gnósticos, que implicavam preparação, estudo, conhecimento, iniciação e segredo, acessíveis apenas a uns poucos, em contraste com a abertura a todos, mesmo os de fracas capacidades, proposta pela corrente proto-ortodoxa, porque aquilo que os crentes não entendessem, bastava que o aceitassem pela fé cega.
Podemos surpreender-nos que o evangelho de João, tão prezado pelas mais variadas correntes esotéricas e ocultistas tanto antigas como actuais, esteja inquinado com algumas passagens nitidamente anti-esotéricas, como esta e outras que pretendem pôr em causa, por exemplo, a autoridade do misterioso evangelho de Tomé: na famosa aparição aos discípulos, depois da Ressurreição, em João 20, 19-23, estão todos presentes menos Tomé, de modo que, quando Jesus sopra sobre eles e diz: «Recebei o Espírito Santo», conferindo-lhes o poder de perdoar os pecados, Tomé fica excluído dessa efusão mistérica e pneumática, o que obviamente tem por fim desacreditar a autoridade do respectivo círculo iniciático (Tomé não recebeu a efusão do Espírito Santo, por isso a sua comunidade e o seu evangelho não são válidos!)
A verdade é que o evangelho de João, nas cópias manuscritas mais antigas que chegaram até nós (aliás como os outros textos bíblicos), não oferece garantias de pureza original pois as mãos de muitos escribas e copistas passaram por ele, e hoje é impossível, mesmo com as mais sofisticadas técnicas de investigação e de «crítica textual», ter uma ideia sequer aproximada de como seria o primeiro texto autógrafo donde foram feitas as sucessivas cópias ao longo dos séculos.
Já para não falar no problema da autoria dos evangelhos que só foi atribuída nos fins do século II d.C. pelo apologeta proto-ortodoxo Ireneu de Lião, que no entanto reconhecia (Adversus Haereses III, 11, 9) que certos grupos cristãos, que ele qualifica como «heréticos», não aceitavam a autoria joanina do Quarto Evangelho. Hoje existe um razoável consenso entre os especialistas bíblicos que o evangelho dito de João passou por vários estágios de transmissão do texto, com, pelo menos, três autores: (1) O autor do «evangelho dos sinais [gr. sêmeia]», em que os sete «milagres» registados em João fazem parte dum primitivo texto onde os «milagres» são designados como «sinais» certificadores da fé; (2) Um «evangelista» que interpreta os «sinais» como indicadores de uma revelação do Deus-Pai invisível, feita por intermédio de Jesus Cristo; (3) Um «redactor» eclesiástico, final, que acrescenta a proclamação do iminente fim do mundo, dos sacramentos e duma ética que coloca os cristãos como a elite entre os homens bons. Segundo certos biblistas, entre a primeira e a terceira fase decorreu um lapso de tempo de, pelo menos, 50 anos, ou seja, os últimos redactores e copistas tiveram tempo e oportunidade para «ajeitar» o texto a uma cristologia cada vez mais antignóstica, bem como à emergência crescente de Pedro como apóstolo principal.
4) Ainda sobre Igreja e Esoterismo, desejo levantar uma questão específica, a qual pode se desdobrar em outros aspectos: o chamado “docetismo” gnóstico, mencionado no seu livro “Esoterismo da Bíblia". Conforme pude entender — e se estiver errado, me corrija —, esta teoria tinha duas variantes. Numa delas, o homem Jesus recebe Cristo (Espírito cósmico) no batismo do Jordão; no momento dramático da crucificação, Cristo abandona Jesus, e deixa este morrer sozinho. Noutra versão, Cristo na Terra apenas se valeu de um corpo “fantasma”, e por conseguinte, sua morte na cruz foi apenas de “aparência”… Semelhante teoria revela muito do dualismo gnóstico —ie, sua aversão à matéria—, e foi considerada “herética” pela Igreja de Roma. O Senhor poderia nos explicar melhor o que era o tal “docetismo”?
Antes de mais convém esclarecer que ao contrário da opinião convencional acerca de «ortodoxia» e «heresia» no cristianismo primitivo, opinião essa que durante muito tempo transmitiu a falsa noção de que haveria um tronco central do cristianismo («proto-ortodoxo» e mais tarde «ortodoxo), derivado dos ensinamentos de Jesus e disseminado sem desvios pelos apóstolos, do qual divergiriam diversas tendências aberrantes e sectárias que por isso mesmo se chamam «heresias» — a realidade histórica é bem diferente. O primeiro a desferir um golpe demolidor nessa visão simplista foi Walter Bauer (1877-1960), um investigador do cristianismo primitivo de grande erudição, que em 1934 publicou uma importante obra de referência, em língua alemã, intitulada (na tradução inglesa) Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity. Através do estudo dos elementos históricos disponíveis Bauer concluiu que a corrente que veio a ser conhecida como «ortodoxia» era apenas uma, e nem sequer a mais significativa, dentre as inumeráveis formas de cristianismo nos primeiros séculos.
Na realidade, dos ensinamentos e dos actos de Jesus saiu directamente um leque de formas divergentes que deram origem a um não pequeno número de linhas de espiritualidade, das quais nenhuma delas se poderia dizer que representasse uma clara maioria de crentes face a todas as outras: tão-pouco se poderia dizer que a chamada «ortodoxia» existisse nos séculos II e III — quando muito poder-se-á falar em «proto-ortodoxia». Aliás, em muitas das regiões por onde se espalhou o cristianismo, as comunidades cristãs maioritárias e dominantes eram constituídas por elementos que perfilhavam concepções cristológicas — gnósticas ou não-gnósticas — que mais tarde viriam a ser consideradas como «heréticas». Por muito estranho que isto nos pareça (então Jesus não é um só, e os seus ensinamentos não são os que vêm na Bíblia?), a verdade é que os próprios discípulos não compreendiam Jesus, como vemos em tantas passagens dos evangelhos, sobretudo no de Marcos, onde se insiste que os discípulos interpretam de diferentes maneiras os discursos e os actos do Mestre, ou nem sequer os entendem, tal como o exemplo que citei na resposta à pergunta anterior (Marcos 8, 16-21).
Não surpreende, por conseguinte, que essas diferenças de interpretação dessem imediatamente origem a escolas e círculos iniciáticos com diferentes concepções cristológicas. Uns diziam que havia um só Deus, e que Cristo era a humanização d’Ele na terra; outros diziam que havia dois deuses, o Deus supremo e o Demiurgo, criador desastrado do mundo e da matéria, e que Cristo era um enviado do primeiro para resgatar os erros do segundo; outros diziam que havia dois deuses, Deus-Pai e Deus-Filho, porque consideravam a divindade de Jesus à parte; outros diziam que Jesus era completamente humano e não divino; outros diziam que Jesus era completamente divino e não humano; uns achavam que Jesus tinha vindo cumprir as profecias judaicas, e completar a lei; outros repudiavam a lei judaica, e que Cristo inaugurara uma nova era, a do amor, contra o rigor da lei, e rejeitavam o Antigo Testamento na sua totalidade; uns acreditavam que Jesus nascera duma virgem por obra do Espírito divino; outros defendiam que Jesus era um ser humano, nascido naturalmente de José e de Maria, e escolhido por Deus para desempenhar uma missão; etc. etc.
O professor catedrático Antonio Piñero da Universidade Complutense de Madrid, reputado especialista de cristianismo primitivo, de gnosticismo e de línguas antigas, numa conferência sobre este assunto que proferiu o ano passado em Lisboa, referiu pelo menos doze concepções diferentes, algumas antagónicas, reinantes nas mais distintas comunidades cristãs primitivas e todas em pé de igualdade, não se podendo dizer que uma fosse mais «verdadeira» ou mais «importante» que as outras — o que importa realçar é que todas essas diferentes escolas e correntes cristãs se reclamavam de ter a sua origem nos ensinamentos deste ou daquele apóstolo, como por exemplo o gnóstico Valentim que se dizia discípulo de Theudas que por sua vez fora discípulo de Paulo, ou os que se diziam seguidores e discípulos de Tiago, de Pedro, de Tomé, etc. considerando-se ao mesmo nível de autoridade e de apostolicidade da corrente proto-ortodoxa que mais tarde daria origem à chamada «Grande Igreja».
É neste contexto que surgem designações cristológicas como «docetismo», «adopcionismo», «separacionismo», «patripassionismo», «subordinacionismo», etc., designações que foram sendo atribuídas às diversas concepções cristológicas que resumi mais atrás.
A pergunta refere dois aspectos distintos de alguns dos vários movimentos gnósticos: um deles, o «adopcionismo», ensina que Jesus foi um ser humano excepcional filho natural de José e de Maria, que pelas suas inúmeras virtudes mereceu ser «adoptado» por Deus-Pai como seu Filho, tornando-se um instrumento do divino Cristo-Logos; uma das variantes dessa doutrina diz-nos que essa «adopção» teria ocorrido no momento do Baptismo, com a descida da Pomba do Espírito Santo sobre Jesus, ao passo que outra refere que essa «adopção» somente ocorreu no momento da morte na cruz, quando o espírito se libertou, a sua missão se cumpriu e Deus-Pai o divinizou.
O «docetismo» propriamente dito pode também apresentar diversas variantes, por exemplo a do gnóstico Basilides ou a do gnóstico Cerinthus. De acordo com o primeiro, o Cristo-Logos sendo divino, eterno e perfeito, não poderia conspurcar-se com a sua involucração num corpo de carne, visto que a matéria é impura e má por natureza. Assim, o Cristo era um «poder incorpóreo» (lat. virtus incorporalis) e o seu corpo era apenas aparencial, parecia de carne mas na verdade era algo de fantasmático que devido ao seu grande poder crístico podia assumir aparência de solidez, comer, beber, falar às multidões, tocar nas pessoas e ser tocado, etc. — mas não passava tudo de aparência: a palavra «docetismo» quer dizer isso mesmo, vem do verbo grego dokeîn, que significa parecer ou aparecer. No momento da crucificação, segundo Basilides, quem morreu foi Simão de Cirene que carregou a cruz, e o Cristo foi visto pelo apóstolo Pedro (Apocalipse de Pedro, Biblioteca de Nag Hammadi) pairando sobre a cruz, em espírito e rindo com o engano dos seus executores. Por sua vez, e de acordo com Cerinthus, o Cristo-Logos incarnou no corpo do Jesus histórico no momento do Baptismo; na crucificação, a Espiritual Força Crística abandonou o corpo de Jesus de Nazaré, e foi este quem sofreu e morreu, e por isso exclamou: «Por que me abandonaste?»
Em suma, tudo isto mais uma vez nos confirma as dificuldades com que depara o estudioso do cristianismo primitivo que queira apurar da «verdade» ou da «falsidade» de todas estas correntes, incluso a proto-ortodoxa. Por isso os investigadores esoterólogos procedem cautelosamente e não preconceituam da veracidade ou falsidade das diversas correntes místicas e esotéricas, debruçando-se antes sobre as condições e circunstâncias sócio-históricas que levaram ao seu surgimento, desenvolvimento e desaparição — ou, em alternativa, preponderância e triunfo histórico, como por exemplo o fascinante estudo que tenta explicar por que foi que a corrente proto-ortodoxa, organizada a pouco e pouco de forma patriarcal e autoritária, à semelhança da hierarquização rigorosa e implacável do Império romano, conseguiu finalmente vingar e ser aceite pelo imperador Constantino que, em Roma, disponibilizou enormes recursos financeiros aos cristãos, ou melhor, à chamada «Grande Igreja», que facilmente se impôs, com esses meios, e reescreveu a História dando desta corrente uma visão maioritária (Eusébio de Cesareia, Historia Ecclesiastica, sécs. III-IV), e fazendo com que os escritos que apoiassem outras visões ou outras correntes de espiritualidade cristã fossem sistematicamente destruídos.
5) Se possível, complemento a pergunta acima com outra: o rosacruz Max Heindel, autor estimado pelo senhor, aceita a distinção entre Jesus e Cristo, todavia, ao mesmo tempo, enfatiza a morte real e física do Cristo-Jesus na cruz, no chamado “Mistério do Gólgota”; salvo engano meu, a visão de Heindel não é —de certa maneira— uma “conciliação” entre os pontos de vista do gnosticismo e da teologia cristã tradicional?
Realmente, o Rosacrucismo tem bastantes raízes gnósticas, e quando se estudam e comparam os antigos movimentos gnósticos com os princípios do esoterismo Rosacruz, encontramos muitos pontos de contacto, sobretudo em Max Heindel (1865-1919) que consegue uma excelente harmonização entre o princípio da Fé (cristianismo ortodoxo), e o princípio da Gnose ( = conhecimento/intelecto espiritual, princípio dos gnósticos). Em vez de opor um ao outro, como faziam e fazem os acérrimos defensores da Igreja, por um lado, e os ocultismos teosofistas, por outro, para os quais a Salvação ou está exclusivamente na Fé ou exclusivamente na Gnose (para estes últimos a ignorância [gr. agnoia] é o pior dos pecados) — Max Heindel salienta (e quanto a mim, bem), que ambos os princípios se complementam e se harmonizam, porquanto o ideal do Homem Superior é unir o coração (Fé) e a mente (Gnose), em vez de ficar apenas na devoção mística (Fé—Igreja) ou nas iniciações ocultas (Gnose—Escolas de ocultismo).
Outros autores importantes, para além de Heindel, também perfilham este princípio de harmonização: por exemplo o hermetista suíço Oswald Wirth (1860-1943), contemporâneo de Max Heindel e discípulo do famoso ocultista Stanislas de Guaïta, explica que o ocultista desenvolve a sua individualidade através da exaltação do Enxofre e a sua Iniciação é masculina ou dórica (Marte), ao passo que o místico conforma a sua personalidade aos princípios da Iniciação feminina ou jónica (Mercúrio segundo Wirth, Lua segundo Heindel). O ideal máximo a alcançar consiste portanto na superior harmonização de ambos os princípios no mesmo ser humano a que Wirth chama o Teurgo e Heindel o Adepto, e no qual se concilia a elevada actividade intelectual do ocultista com a elevada passividade cordial do místico. Uma explicação mais aprofundada e muito clara deste excelso ideal encontramo-la no capítulo XVII da obra de referência Conceito Rosacruz do Cosmo de Max Heindel, onde se descreve o percurso das correntes sexuais respectivamente no místico, no ocultista e no Adepto, e sua sublimação e transmutação espiritual neste último.
Para a corrente Rosacruz seguida por Max Heindel, há de facto diferença entre Jesus e Cristo: Jesus de Nazaré é um ser humano altamente evoluído, filho natural de José e de Maria, que se qualificou com um intenso preparo esotérico e espiritual para receber, no momento do Baptismo, o Espírito Cósmico do Cristo que utilizou o seu corpo durante o ministério de três anos, incluso na Crucificação, somente o abandonando no sepulcro. Por isso o sepulcro de Cristo Jesus foi encontrado vazio: as altíssimas vibrações do Cristo desintegraram os átomos do corpo morto de Jesus, o qual perdera com a morte o forte poder coesor de que necessitava para conter a elevadíssima espiritualidade vibratória do Cristo. Foi este, e não Jesus, quem apareceu em corpo espiritual «ressuscitado» aos discípulos, e ascendeu aos céus; Jesus, nos reinos invisíveis, tem desde então trabalhado com as Igrejas cristãs, sendo o génio protector da obra devocional das Igrejas mediante a qual a religião é fomentada e o ser humano é recuperado para Deus através da senda cordial (lat. cor, cordis, «coração») da Devoção.
Registe-se, por curiosidade, que a imagem de Jesus impressa no Sudário de Turim e cuja misteriosa formação tem constituído um quebra-cabeças para os cientistas das mais diversas especialidades, parece provir de uma radiação controlada emitida por um corpo que se desintegrou em átomos irradiando partículas de alta energia, o que justificaria, por um lado, o desaparecimento do corpo no sepulcro, e, por outro, a relutância da Igreja em aceitar a autenticidade do Sudário — se é autêntico, pode ser uma prova incómoda de que o Cristo não ressuscitou «em corpo de carne», mas em «corpo espiritual» ou «corpo etérico» como defendem os esoteristas…
6) Falando de Rosacruz e rosacrucianismo, autores como G. Lessing (tido como rosacruciano), M. Heindel e R. Steiner concebiam o cristianismo como um ideal de moralidade livre e superior. Mesmo R. Abellio, que não era a rigor um “rosacruz”, assumia em sua autobiografia “Sol invictus”, sob a influência de Steiner, uma visão do Cristo como o “portador da liberdade”, ao abalar a autoridade paternalista da Lei antiga. Na sua visão de Rosacruz, o Senhor outrossim enxerga esta relação entre cristianismo rosacruz e uma ética da liberdade?
Sem dúvida, desde que não se confunda uma visão de liberdade com uma visão libertinária. Aliás esse ideal de liberdade, tipicamente cristão e revolucionário no contexto sócio-histórico em que surgiu (um ambiente impregnado, simultaneamente, de judaísmo patriarcalista e autoritário, e de paganismo greco-romano também patriarcalista e autoritário), já é muito patente nas cartas de Paulo — e refiro-me às sete epístolas consideradas autênticas pelos especialistas bíblicos: 1 Tessalonicenses, Gálatas, 1 e 2 Coríntios, Filémon, Filipenses e Romanos, compostas entre os anos 50 e 56 d.C. — as restantes são pseudónimas e escritas muito posteriormente, nalguns casos para tentar «corrigir» precisamente essa visão de liberdade típica de Paulo, visão convivial e igualitária para todos os seres humanos, homens ou mulheres, senhores ou escravos, desta ou daquela etnia ou cor de pele, e correlativa não sujeição às autoridades repressoras, como naquele tempo a dos Romanos.
Paulo sempre aceitou, tal como Jesus, a igualdade entre discípulos e discípulas, incluso cita o nome de mulheres diáconas e apóstolas (Febe: diácona, em Romanos 16, 1; Júnia: apóstola, em Romanos 16, 7), em contraste com a pseudopaulina e tardia epístola aos Efésios, por exemplo, em que se afirma que as mulheres têm de obedecer e submeter-se aos maridos (Efésios 5, 22-24), ou uma escandalosa interpolação na epístola aos Coríntios, em que se proíbe às mulheres de falarem nas igrejas e que perguntem aos maridos, em casa, se querem aprender alguma coisa (1 Coríntios 14, 34-35).
O cristianismo Rosacruz não pode deixar de perfilhar essa ética superior de liberdade e igualdade, aliás magnificamente expressa pelos dois maiores Iniciados cristãos, Paulo e João: «Não sabeis que sois templo de Deus, e o Espírito de Deus habita em vós?» (1 Coríntios 3, 16); «O Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito do Senhor há liberdade» (2 Coríntios 3, 17); «Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará» (João 8, 32) — e isto é válido para homens ou mulheres, senhores ou escravos, judeus ou gentios, como acentua Paulo sem equívocos: «…já não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há varão nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gálatas 3, 28).
7) Para encerrar, li recentemente um artigo do R. Amadou, escrito em 1977, sob o influxo da contracultura dos anos 60-70; no artigo mencionado, o Amadou fazia uma crítica radical do que considerava versões burguesas e autocráticas de vida e de Esoterismo, postulando em contrapartida a iniciação esotérica como atualização da tradição, e como via da liberdade e efetivação do potencial humano. Trazendo um pouco daquela problemática para nosso contexto atual, e levando em conta os escritos do Senhor sobre iniciação e Nova Era, pergunto: em sua visão, o Esoterismo, e portanto a iniciação, poderia contribuir para nossa sociedade não perder o sentido da vida espiritual, sem ao mesmo tempo ter de ficar presa às formas ultrapassadas de religião e espiritualidade? Se sim, como seria isso?
Não creio que seja fácil de alcançar, esse ideal, nas sociedades laicas dos tempos que correm. Não estou a ver o presidente Lula da Silva, ou o presidente Hugo Chávez, já para não falar do presidente Putin ou do presidente Bush, a tornarem-se altos iniciados para dirigirem os destinos dos respectivos povos de forma esotericamente espiritual. Já houve tempo em que isso não só foi possível, como nem podia ser de outra maneira: os faraós do antigo Egipto eram reis e sacerdotes, e os monarcas medievais eram reis pela «graça de Deus».
Entretanto os tempos mudaram com a evolução da História e da Humanidade. Por muito estranho que pareça o caminho da espiritualidade progressiva alcança-se apenas depois de ter batido no fundo da mais espessa materialidade — tal como diz um antigo provérbio alquímico: «Para que os ramos duma árvore alcancem o céu, é preciso que as suas raízes mergulhem no inferno». É isso que estamos a sofrer actualmente: o inferno da materialidade. Hoje os governantes (quaisquer governantes, mesmo o simples chefe de escritório ou o chefe de família) é um profano que na maioria dos casos se vangloria de ser ateu ou pelo menos agnóstico, e os que aparentam alguma forma de religiosidade, como os chefes de Estado de certas nações católicas ou protestantes, no fundo apenas seguem uma religiosidade exotérica não muito distante dum ritualismo meramente formal, sem a sacralidade de um sopro autenticamente divino — tal como, por muito que nos custe reconhecê-lo, as manifestações e os ritos cultuais, meramente externos, da própria Igreja e da maioria dos crentes. É este porém um passo indispensável, a materialidade tem de ser confrontada, compreendida, vencida e ultrapassada para podermos ascender, com uma nova super-consciência, à verdadeira e livre espiritualidade.
Podemos interrogar-nos, de facto, se o Esoterismo e a Iniciação (que pressupõe adesão profunda e consciente a uma Escola de Mistérios), poderia contribuir para que a nossa sociedade não perdesse o sentido da vida espiritual, tão degradado pelos formalismos de certo modo ultrapassados das religiões institucionalizadas. A isso só poderei responder que as religiões, com todas as suas insuficiências, são todavia meios indispensáveis para que a generalidade dos seres humanos «alcancem Deus», pois para a maioria é mais acessível o caminho devocional da Fé, mesmo cega e irracionalista, do que o caminho oculto da Gnose, que implica o entendimento e a abertura a uma racionalidade superior, a Razão do Logos. Quando o evangelho de João revela, nos seus primeiros versículos, que «No princípio era o Logos [ = palavra, discurso racional] […] e tudo foi feito por ele», revela do mesmo passo que a racionalidade (divina!) é uma característica do universo e de tudo quanto nele existe, incluso o ser humano: o Real é Racional. Mas, claro, esta racionalidade sublime, que não é rasteiramente racionalista como a da quotidiana razão instrumental, não é alcançável por quem quer, por isso a suprema Inteligência ordenadora do cosmo permite que o Homem se eleve ao nível da Divindade por duas vias: a senda da Evolução e a senda da Iniciação.
A senda da Evolução, a da humanidade comum, pode ser equiparada a um caminho ascensional circundando a montanha, em subida relativamente suave e sucessivas voltas espiraladas até atingir o Alfa-Ómega do cume. Claro que é um caminho longo e lento, talvez de muitos milhões de anos, e envolve todo o penoso percurso com seus muitos erros, tentativas, avanços e retrocessos — dos quais um dos passos inevitáveis é, precisamente, defrontar o desafio do materialismo e conseguir superá-lo e vencê-lo.
Por sua vez a senda da Iniciação é como subir a montanha por meios alpinistas, em que o candidato se iça na vertical, a pique e à força de pulso; é muito mais rápido mas requer um esforço e um preparo muitíssimo maiores, e são raros os que o empreendem, e muito mais raros ainda os que conseguem ir até ao fim sem desistir a meio.
Por isso não desanimemos! Se falharmos a plena realização da senda iniciática, sempre temos ao nosso dispor o caminho mais longo, mas não menos certo, da lenta evolução. Na certeza de que, quer num caso, quer no outro, o Alfa-Ómega do cume é o mesmo e estará sempre de braços amorosamente abertos, aguardando a nossa chegada ao topo e o regresso do filho pródigo à «Casa do Pai Misericordioso».
Antonio de Macedo
Por Daniel Rodrigues Plácido - 06 de Abril de 2007
Extraído do site:
http://gnosisportugal.blogspot.com.br/2012/05/o-que-e-esoterologia-biblica.html#more
Extraído do site:
http://gnosisportugal.blogspot.com.br/2012/05/o-que-e-esoterologia-biblica.html#more
Nenhum comentário:
Postar um comentário