Por Kadu Santoro
Segundo
a narrativa mítico simbólica do Antigo Testamento em Gênesis, Abraão teria se
dirigido “de Ur na Caldéia para a Terra Santa, distante de Haran”. Pois bem, na
verdade ele estava aspirando à vida espiritual, remetendo quando alguém
desperta a sua consciência e decide empenhar-se a conhecer a si mesmo, além
disso, ele levara um conjunto de almas consigo, duplicando desse modo o efeito
de seu próprio empenho, pois aquele que coloca o seu próximo no caminho da
busca pela espiritualidade, sempre colhe os benefícios de seu mérito também.
Como resultado de suas encarnações anteriores, as almas elevadas de Haran
tiveram a permissão de acompanhá-lo nesse jornada interior da alma. Modelo
arquetípico para todos os aspirantes à Sabedoria Divina, Abraão primeiro desceu
ao Egito (mundo material de Assiah, onde impera o desejo, o ego e toda forma de
ambição), provando as profundezas da experiência mundana antes de começar a
escalar a Árvore da Vida.
Ao
contrário de Adão e Noé, onde o primeiro tomara precipitadamente a sabedoria e
o segundo se embebedara com ela, Abraão foi o primeiro habitante dos abismos do
mundo a merecê-la quando deles emergiu, unindo definitivamente a sua mente e o
seu coração à sephira da Sabedoria (Chokmah).
A
árdua jornada espiritual de Abraão, relatada nas lendas exotéricas de suas
peregrinações e das provas a que fora submetido por “Deus”, terminara quando
ele atingiu o nível de iluminação denominado Sabedoria. Para designar sua realização, uma letra do nome divino
foi acrescentada ao seu, Abrão tronou-se Abraão, mais um Aleph como marca de
sua ascensão espiritual.
Sua
“entrada na Terra Santa” corresponde à “construção de um altar” em cada esfera
ao longo da jornada pela Árvore da Vida, ou seja, deixar uma parte de si mesmo
para trás em cada uma delas, até estar suficientemente esvaziado para ser
preenchido pela Sabedoria. Esse
processo de desconstrução é necessário para a evolução rumo ao Uno,
libertando-se de toda forma de desejo, de crenças e apego ao plano denso de
Malchuth.
Um
cabalista deve se encontrar preparado para atravessar as esferas estabilizando
os elementos físicos dentro de si. Só um homem perfeitamente equilibrado em seus
três centros constitutivos (instintivo – Nephesh / Emocional – Ruach /
Intelectual – Neshamah) é capaz de sobreviver às provas simbólicas de fé
suportadas por Abraão. Onde o patriarca simbolizara a Sabedoria, tendo como exemplo o seu filho Isaac, suportado a mais
alta prova sacrificial, ou seja, a possibilidade da morte do novo, a esperança
que é sustentada pelo apego e pelo desejo, tornando-se assim a representação
cabalística do julgamento (Geburah),
e por outro lado, Jacó tipifica o patriarca prudente, sendo representado como o
símbolo da beleza (Tiphareh). Da
mesma maneira, poderíamos dizer que cada esfera patriarcal poderia ser
contemplada como um membro específico do corpo cósmico, uma letra ou um som do
Nome Sagrado, uma cor, uma luz, uma forma geométrica, etc. Mesmo os
“sacrifícios sacerdotais no Templo” representam alegoricamente emblemas para
contemplação.
O
perfume do incenso em torno do altar dos sacrifícios provocava uma contração no
nariz, e esse penetrava até o cérebro, acalmando e suavizando os pensamentos
provocando assim uma sensação agradável. Contrariamente à leitura comum,
literal do Deuteronômio, a interpretação do Rabino Simeon ao “aroma do
apaziguamento” não se refere às oferendas queimadas para aplacar um Deus irado
e perpetuamente colérico, mas considerava o “incenso” como uma ajuda para
reduzir a própria “cólera” e restabelecer a calma à agitada mente humana,
permitindo a entrada da alegria e da iluminação. Logo, a fumaça que se eleva do
altar simbólico do templo do corpo, condensa, portanto, o “fogo da cólera até
ocorrer uma reconciliação, um apaziguamento do espírito, um regozijo universal,
uma radiância de luzes, um resplandecimento das faces.”
A
alegoria da oferenda diária de vinho no altar do Templo, simboliza
cabalisticamente o espírito de alegria do místico quando iniciava sua
meditação. O processo de “acender as lâmpadas”, significa iluminar a centelha divina (Neshamah) dentro de si.
A palavra Isra-el, significa o coração humano (Lev); “Terra Santa” era o estado
de iluminação, enquanto Egito era o veneno perturbador do mundo sensorial.
Mesmo a construção do Templo era análoga à expansão do espírito dentro do
corpo. Com esse objetivo, o Rabino Simeon explanou sobre o perene “espírito da
vida” que é “exalado” por Deus, e recolhido pelo homem na garganta. No estado
de meditação e atenção plena, o homem é capaz de acumular conscientemente o
“Espírito da Vida” e transformá-lo em “energia divina” – Elohim Hayim”, o “Deus
Vivo”. Nesse ponto a energia divina compele os quatro elementos formativos
(terra, fogo, água e ar) de volta a seu estado mais simples, reduzindo desse
modo o pensamento a som puro (vibração). Nessa condição suspensa, corpo e mente
estão de tal modo imóveis que o cabalista torna-se nesse momento um canal vazio
vibrando com energia divina. Esse estágio podemos chamar alegoricamente de “a
Casa sendo construída”, indica que esse indivíduo transcendera as percepções
limitadas impostas ao homem através da mente racional intelectual. A listagem
alegórica dos materiais e medidas cuidadosamente definidas para a construção do
Templo de Salomão não passam de um exercício inspirador mental, através do qual
o homem poderia antever seu próprio aprimoramento e perfeição.
Moisés,
imobilizara seus pensamentos e purificara seu corpo de forma tão profunda que
instantaneamente percebeu e submeteu-se a Deus (Kheter – Coroa). A narrativa
alegórica de Moisés nos diz que ele vislumbrou a Terra Prometida de Canaã, porém
não entrou, isso significa cabalisticamente que ele atingiu um nível muito
elevado e logo, não poderia tomar posse a essa “Terra Prometida” com um corpo
material densificado como o nosso, e sim, ascendera a um nível mais elevado de
vibrações sutis (Yechidah). No caso de Jacó, esse não conseguiu apartar-se
inteiramente das ansiedades em relação à sua “família terrena”, e por isso
atingiu um grau menor de iluminação (Tiphareth – Beleza). De modo oposto, os
que sofreram os efeitos de uma mente puramente racional construíram para si uma
“torre de babel” e nela ficaram presos em suas convicções.
O
Zohar (Livro do Explendor) enfatiza repetidamente a unidade da palavra, do
pensamento e da energia, ou seja, os três atributos constitutivos do universo –
luz, som e movimento, logo, ligar-se em estados de consciência elevados, ao som
da santidade (como por exemplo no pronunciamento do Shemá) significa na verdade
ligar-se à sua essência. As narrativas míticas e emblemáticas dos patriarcas,
do mesmo modo que as esferas que eles representam, podem ser reduzidas ainda
mais até o nível semântico das letras do “Nome de Deus”. O mapa da consciência
do autor do Zohar, vai além da esfera da Sabedoria
e abrange toda a criação.
“Verdadeiramente, tudo o que Deus faz no
mundo é um emblema da Sabedoria divina... Ademais, todos os trabalhos de Deus
são os caminhos da Torah... e nem uma única palavra está contida nela que não
seja uma indicação dos muitos caminhos e trilhas e mistérios da Sabedoria
divina... Cada incidente registrado na Torah contém uma multidão de
significados profundos, e cada palavra em si é uma expressão da Sabedoria e da
doutrina da verdade.”
Uma
vez que todo o universo criado – como é apresentado segundo os atributos
divinos da Árvore da Vida – poderia em qualquer momento oferecer ao cabalista
uma chave hermenêutica para uma meditação profunda em nível de Sod. Seus meios eram tão complexos e
inumeráveis como a miríade de coisas criadas em volta e dentro dele. Logo, o
que poderia ele esperar ver quando iniciava sua ascenção da divindade ruma à
unidade, abarcada pelo primeiro ponto místico da letra Yod dentro da esfera da Coroa?
Segundo o autor do Zohar, em profundo estado de contemplação, as esferas
revelam-se contidas uma dentro da outra como camadas de uma cebola, “cérebro
dentro de cérebro e espírito dentro de espírito.” O que os mestres anteriores
da Merkabah chamavam de hekhalot, ou metaforicamente “muralhas do palácio de
Deus”, na realidade eram, segundo ele, extensões do ponto primordial da Coroa que é incógnito e não pode ser
compreendido através da nossa lógica racional humana. Isso que é chamado de
“palácio”, funciona como um manto protetor para essa luz primordial, com o
efeito de diminuir seu brilho para que seja possível aos humanos poderem ver
(esse conceito tem influências diretas do Mito da Caverna de Platão) e
compreender, e esse também é o sentido cabalístico do texto de João 1.1-14,
onde o estado crístico de iluminação desce até o Reino (mundo densificado –
Malkhuth) e ainda assim poucos são aqueles capazes de receber tais
conhecimentos, entre esses poucos, são aqueles do qual fala os evangelhos,
muitos os chamados e poucos os escolhidos, ou também a menção sobre a porta
estreita e caminho apertado, que significa o caminho para dentro de si, duro de
ficar frente a frente consigo mesmo e reconhecer aquilo que precisa ser
transformado. O primeiro “vestíbulo” contém um outro e assim sucessivamente,
cada “vestíbulo” descendente criando membrana de qualidades para o que precede.
De modo a atingir a luz definitiva, o cabalista procura estudar a Torah
contemplando as suas letras num estado de êxtase, aberto a intuição e os
insights vindos da luz.
Dizia
o autor do Zohar: “Quando eu rezo,
levanto minhas mãos para o alto, pois quando minha mente está concentrada no
mais elevado, existe o mais superior ainda que nunca pode ser conhecido ou
apreendido, o ponto inicial que é absolutamente oculto, que produziu o que
produziu permanecendo incognoscível, e irradiou o que irradiou permanecendo
irrevelado.”
Após
essa descrição do autor do Zohar, ele recomendava procurar visualizar a
primeira emanação desse ponto de luz, também chamado de “fragmento do
Absoluto”, onde esse se tornaria o primeiro dos “vestíbulos” compreensíveis à
mente humana, a esfera da Sabedoria.
A tensão da concentração nesse alto nível, porém, seria grande demais se a luz
não fosse obscurecida, e essa é a função da segunda membrana ou segundo
“vestíbulo”, a esfera chamada Entendimento.
Após essas, emanam fragmentos ainda mais sutis oriundas da luz primordial, que
o autor recomenda que se use como uma escada (A escada de Jacó) para um outro
nível de ascensão contemplativa rumo a Coroa.
Logo,
podemos concluir que todas as narrativas bíblicas em especial a dos patriarcas,
guardam em segredo a sua essência na linguagem do Sod, ou também chamado a linguagem dos ramos, utilizando-se de
metáforas e alegorias para despertar a curiosidade daqueles que a leêm,
provocando questionamentos e dúvidas levando assim para níveis mais profundos
de relacionamento com a luz primordial, caso contrário, aqueles que viverem
conformados e acreditando nas narrativas de forma literal, ficarão estagnados e
não conseguirão evoluir para o grande salto quântico e passar para uma dimensão
mais sutil, continuarão em Malkhuth
sujeito a roda das encarnações até que em uma de delas o ser desperte sua
consciência e não se sinta mais satisfeito com os deleites desse mundo
ilusório, efêmero e passageiro.
Referências:
EPSTEIN,
Pearle – CABALA – O caminho da Mística Judaica – Ed. Pensamento – SP – 1978
ZUKERWAR,
Chaim David – As 3 Dimensões da Kabalá – Essência, Infinito e Alma – Ed. Sêfer
– SP – 1997
REISLER,
Leo – KABBALAH – A Árvore da sua vida – Ed. Nórdica – RJ - 1996
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