Sabemos que as
narrativas bíblicas consistem em um verdadeiro caleidoscópio de interpretações,
nos permitindo observar os textos por vários ângulos e abordagens. Aqui nesse
artigo eu venho apresentar uma abordagem sobre os mitos de Bereshit (Gênesis)
dentro da perspectiva da Cabala.
Apesar desses
três temas míticos mencionados no título encontrarem-se separados na ordem da
Torá, eles falam basicamente sobre a mesma coisa, ou seja, procuram expressar a
mesma ideia da qual vamos falar de agora em diante.
O Grande Dilúvio,
com certeza é um dos mitos mais reproduzidos nas diversas culturas,
principalmente na região da mesopotâmia no oriente médio. Podemos encontrar
referências na Epopéia de Gilgamesh entre outros textos. Porém, seguindo o foco
da interpretação cabalística, o Grande Dilúvio consiste em uma alegoria sobre a
queda da civilização e da destruição da “cultura”, onde esse acontecimento nos
remete a uma aniquilação de uma grande parte da raça humana, fruto
provavelmente de cataclismos geológicos, guerras, migrações de povos,
epidemias, revoluções ou causas semelhantes. Muitas vezes essas causas
coincidem. A ideia da alegoria é que, no momento da aparente destruição, o que
era realmente de significativo valor acaba sendo salvo, preservado de acordo
com um plano previamente calculado e pensado. Um pequeno grupo de homens escapa
da lei geral, salvando todas as ideias e conquistas mais importantes de sua
cultura.
A lenda da Arca
de Noé consiste em um mito com fundamento esotérico, onde a construção da
“Arca” representa a “escola”, a preparação dos homens para a iniciação (dentro
de uma visão pitagórica), para a transição de uma nova vida, para um novo
nascimento. A Arca que se salva do dilúvio representa o círculo interior da
humanidade (aqueles que se encontram despertos).
O segundo
significado da alegoria se refere ao homem como indivíduo, onde o dilúvio
consiste na morte inevitável. Porém, o homem pode construir dentro se si uma
“Arca” e nela reunir espécimes de tudo o que é valioso nele. Em tal situação,
esses espécimes não perecerão e sobreviverão à morte e nascerão novamente. Do
mesmo modo que a humanidade pode se salvar somente graças à sua ligação com o
círculo interior (esotérico), o homem pode alcançar a “salvação” pessoal
somente por meio de uma união com o seu próprio círculo interno, isto é,
mediante a sua ligação com as formas superiores de consciência.
O segundo mito, o
da Torre de Babel, consiste em uma outra versão do primeiro; este, porém, fala
de salvação, ou seja, dos que serão salvos, ao passo que o segundo fala apenas
de destruição, sobre os que perecerão.
A torre de Babel
representa a cultura, onde os homens desejam construir uma torre de pedra “cujo
topo toque os céus” criando uma vida “ideal” na Terra. Crêem nos métodos
intelectuais, nos mais diversos procedimentos técnicos, nas instituições
formais, etc. Ao longo de muito tempo a torre vai subindo cada vez mais sobre a
superfície da Terra. Mas chega inevitavelmente o momento em que os homens
deixam de se compreender mutuamente, ou melhor, tomam ciência de que nunca o
fizeram, pois cada um deles compreende ao seu modo a vida ideal na Terra. Cada
qual quer levar a cabo as suas próprias concepções realizando o seu próprio
ideal. Este é o momento em que começa toda a “confusão das línguas”. Os homens
deixam de se compreender até nas coisas mais simples; a falta de compreensão
provoca discórdias, hostilidade e lutas. Os homens que constroem a torre
começam a se matar reciprocamente e a destruir o que juntos construíram e
finalmente a torre cai em ruínas.
Essa mesma
situação ocorre na vida de toda a humanidade, dos povos, das nações e na vida
do próprio homem como indivíduo. Cada homem constrói uma Torre da Babel em sua
própria vida. Os seus esforços, as suas metas e objetivos na vida, as suas
conquistas, tudo isso representa a sua torre. Porém, é inevitável o momento em
que a torre cairá. Um pequeno choque, um acidente, uma doença, um pequeno erro
de cálculo, e tudo vai abaixo. Quando o homem cai nessa situação, percebe que é
tarde demais para corrigi-lo ou alterá-lo. Ou então chega um momento, durante a
construção da torre, em que os “eus” múltiplos e diferentes da personalidade de
um homem perdem a confiança uns nos outros, vêem todas às contradições dos seus
desejos e metas, vêem que não tem nenhuma meta comum, deixam de se compreender
mutuamente, ou mais exatamente, deixam de pensar que compreendem. Então, a
torre deve cair, a meta ilusória deve por fim desaparecer, e o homem deve
sentir que tudo que fez foi infrutífero, que não o conduziu a nada e não podia
levar a nada e que diante dele há apenas um fato real – a morte.
Toda a vida do
homem, o acúmulo de poder, prestígio, riquezas, conhecimento, equivale à
construção de uma Torre de Babel, porque o fim é terminar numa catástrofe, a
saber, em morte, que é o destino de tudo que não pode passar a um novo plano de
ser.
O terceiro mito,
o da destruição de Sodoma e Gomorra, nos mostra de forma mais nítida o que os
outros dois nos mostram, sobre o momento da interferência das forças superiores
e as causas dessa interferência. Deus concordou em poupar Sodoma e Gomorra
graças à cinquenta, quarenta e cinco, trinta, vinte e finalmente dez homens
justos. Porém, nem dez homens justos foram encontrados e assim as duas cidades
ruíram. A possiblidade de evolução fora perdida. O “Grande Laboratório da Vida”
pôs fim à experiência frustrada. Mas Ló e a sua família foram salvos. A ideia é
a mesma dos outros dois mitos, porém enfatiza, de modo especial, a disposição
da vontade diretora de fazer toda as concessões possíveis, enquanto houver a
esperança de realização dos objetivos estabelecidos para a humanidade. Desaparecida
essa esperança, a vontade orientadora deverá intervir de forma inevitável, com
o intuito de salvar o que merece salvação, deixando que todo o resto seja
eliminado.
Todos esses
mitos, a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden, a queda da Torre de Babel, o
Grande Dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, são todas lendas e alegorias
relativas à história da raça humana e seu processo de evolução. Além dessas
lendas e muitas outras semelhantes, quase todas as raças tem lendas, contos e
mitos de estranhos seres não humanos, que passaram pelo mesmo caminho antes do
homem, como disse Joseph Campbell: "Não precisamos correr sozinhos o risco da
aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O
labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha
do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos a nós
mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa
própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do
mundo todo." A saga do
Herói. A queda dos anjos, dos Titãs, dos deuses que ousaram desafiar outros
deuses mais poderosos, a queda de Lúcifer, o demônio ou Satã (que no aramaico
significa oponente ou aquele que acusa), são todas quedas que antecederam a queda
do homem. E é um fato indubitável que a significação de todos estes mitos está
profundamente oculta para nós, e extremamente nítido que às interpretações
teológicas e teosóficas comuns nada podem explicar, porque estabelecem a
necessidade do reconhecimento da existência de raças ou espíritos invisíveis,
que são, ao mesmo tempo, semelhantes ao homem nas relações que tem com as
forças superiores. A insuficiência para tais explicações é evidente. Porém, ao
mesmo tempo seria um grande equívoco deixar todos esses mitos sem nenhuma
reflexão, porque, devido à sua persistência e repetição, entre os diferentes
povos e raças, parecem de alguma forma atrair a nossa atenção para certos
fenômenos o qual não conhecemos, mas devemos buscar conhecê-los.
O
mais interessante é que as lendas e os cantos épicos de todas as culturas
encerram muito material referente aos seres não-humanos que precederam o homem
ou que até mesmo existiram ao mesmo tempo que ele, mas diferiam do homem em
diversos aspectos. Esse material é tão abundante e significativo, a ponto de
colocar as religiões em uma saia justa, que não tentar explicar esses mitos
seria fechar intencionalmente os olhos a algo que deveríamos enxergar. A menos
que queiramos ignorar inúmeros fatos ou crer em espíritos tridimensionais, capazes de construir edifícios de pedra,
devemos supor que as raças pré-humanas eram tão físicas quanto o homem, e
teriam vivido, como este dentro do Grande Laboratório da Natureza;
compreendendo que a natureza teria realizado muitas tentativas para criar seres
auto-evolutivos antes do próprio homo sapiens. E, além disso, devemos supor que
tais criaturas foram lançados na vida pelo Grande Laboratório, porém, não
conseguiram satisfazer a natureza em seu desenvolvimento posterior e, em lugar
de realizar os desígnios da natureza, se voltaram contra ela. Logo, a natureza
teria abandonado a sua experiência com eles e deu início a um novo projeto.
O
que eu proponho nesse artigo, é chamar a atenção dos leitores para níveis de
interpretações mais profundos a respeito dos mitos, fábulas e lendas, de forma
a despertar a consciência para novos horizontes e perspectivas a respeito das
relações entre esses (mitos e lendas) e o desenvolvimento da raça humana com
todos os seus aspectos emocionais, intelectuais, instintivos e espirituais, a
fim estabelecermos novos rumos para a nossa evolução consciente rumo à
transcendência como diz Jung: “O
indivíduo não realiza o sentido da sua vida se não conseguir colocar o seu Eu a
serviço de uma ordem espiritual e sobre-humana.”
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