Por Kadu Santoro
A Cabala
Cristã, também chamada por alguns historiadores de Cabala Renascentista ou hoje
em dia como uma das áreas de estudo da Teologia Relacional, consiste na
confluência entre duas áreas de estudos esotéricos, a primeira é a mística
judaica, representada pela Cabala hebraica (Sepher Yetsirah e o Sepher ha-Zohar),
e a segunda, a Tradição Hermética baseada nos princípios de Hermes Trismegisto
(três vezes grande). Esse movimento filosófico surgiu a partir do momento em
que alguns eruditos cristãos buscavam uma conciliação entre o cristianismo e
determinados aspectos da sabedoria oculta judaica, a partir das traduções de
textos neoplatônicos que chegaram à Europa, oriundos de Constantinopla. Esses
textos foram traduzidos do grego e hebraico, e a partir dessas traduções,
eclodiu um crescente desejo de reinterpretar e rever certos aspectos da
doutrina cristã através de uma visão mais profunda (mística) do que
tradicionalmente era feito. A base principal de elementos era a reinterpretação
do cristianismo em geral e do Novo Testamento a partir da visão cabalística.
Os cabalistas
cristãos eram mais interessados na observância, estudo ou compreensão
sistemática da Cabala do que no uso semântico com base na língua hebraica, ou
seja, eles interessavam-se mais pelos processos gerais da Cabala do que pela
elaboração de uma verdadeira Ciência do Ser, para ser aplicada na vida. Os
assuntos de interesse dos Cabalistas cristãos eram voltados para conceitos
metafísicos como os nomes de Deus (72 nomes), hierarquia dos seres angelicais,
a causa da queda do homem, etc.
Na visão
ocidental, a lógica aristotélica apresentava-se com a articulação interna do logos, destinada a facilitar a
descoberta da verdadeira estrutura da realidade. Enquanto “filosofia primeira”
segundo os escolásticos, a metafísica opõe-se à coisa em si, ao número do
objeto de pensamento, enquanto a visão cabalística remonta à origem de Deus e
das coisas, ou seja, é a ciência do Ser em particular. O logos segundo os cabalistas, deixa de ser o “dizer” carregado de
significados, torna-se o davar (ordem,
assunto, ato de fazer, etc.), isto é, a Palavra como era tomada por Philon de
Alexandria quando aceitava ir além do “lugar das idéias” ou da “lei moral”.
Portanto o davar constitui o
verdadeiro intermediário entre a absoluta transcendência de Deus e a finitude
do homem.
Embora os
Cabalistas cristãos buscassem nas fontes hebraicas respaldo para suas novas
interpretações das Sagradas Escrituras, o clima mental destes era diferente dos
rabinos Cabalistas da Espanha ou Galiléia, apesar de tratar-se sempre da
interpretação esotérica a partir de Israel, que se efetua necessariamente a
partir do hebraico e aramaico.
Giovanni Pico
della Mirandola (1463-1494), foi um dos primeiros cristãos a mergulhar nos
estudos Cabalísticos no período da Renascença, foi discípulo de Marsílio Ficino
na Academia de Florença, possuía uma visão sincrética do mundo, combinava os
pensamentos platônicos e neoplatônicos com o aristotelismo, o hermetismo e a
Cabala judaica. Ele redigiu seus tratados sob a proteção de Elie Del Medigo e
de Johannan Alemanno, devido às fortes ameaças e pressões da igreja dominante
da época. Pico chegou a estabelecer uma doutrina sobre a possibilidade de se
descobrir o Deus único em todas as religiões e na filosofia, através da
harmonização entre a Cabala e o neoplatonismo. Pico morreu jovem aos 31 anos,
porém, deixou um legado de nada menos do que novecentos tratados, as Conclusiones Philosophicae Cabbalisticae ET
Theologicae.
Johann
Reuchlin (1456-1522) deu prosseguimento no processo de cristianização da
Cabala, foi aluno de língua hebraica do rabino Jechiel Loans, de Linz, e do
sábio judeu italiano Abdi ben Jacob Spuon. Reuchlin publica De Verbo mirifico em 1494 de De Arte cabalística em 1517, tomando a
defesa dos livros hebraicos ameaçados de auto-de-fé em Colônia e em Frankfurt.
Neste meio tempo, o restaurador dos estudos hebraicos na Alemanha deu a público
os seus Rudimenta linguae hebraicoe
(1506). Os cabalistas cristãos colecionaram manuscritos hebraicos e traduziram
para o latim fragmentos do Sepher
Ha-Zohar e o Sepher Yetsirah.
Guillaume Postel (1505-1581) procurava nas letras sagradas a “chave das coisas
ocultas” – Absconditorum clavis –
enquanto o inglês Robert Fludd (1574-1637) estabelece uma relação entre as dez
esferas de Aristóteles e as dez Sephirots da Árvore da Vida cabalística.
Um dos grandes
nomes desse período foi sem dúvida, o místico, sábio e humilde sapateiro de
Goerlitz, Jacob Boehme (1575-1624). Sua obra testemunha um paralelismo entre o
cristianismo místico e os ensinamentos fundamentais da Cabala judaica. Boehme
aprofundou-se sobre temas polêmicos dentro da visão judaico-cristã como a
natureza do pecado, do mal e da redenção. Na sua visão fortemente influenciada
pela Cabala, era necessário que a humanidade se voltasse para Deus a fim de que
a criação voltasse ao seu estado original de harmonia e inocência, permitindo
ao homem atingir uma nova auto-consciência pela interação com a criação, que se
tornaria, ao mesmo tempo, parte Dele e distinta Dele. Desde modo, o livre arbítrio
seria o mais importante dom concedido por Deus à humanidade, permitindo-nos
buscar a graça divina na condição de uma livre escolha, enquanto permitiria aos
seres humanos manter as suas individualidades.
Boehme, numa
visão cabalística, compreendia a encarnação de Cristo não como um sacrifício em
função de perdoar os pecados da humanidade, mas sim como uma oferta divina de
amor para a mesma, mostrando através desse ato a vontade de Deus suportando
igualmente o sofrimento terreno como um aspecto necessário da criação. Ele
também acreditava que a encarnação de Cristo expressava a mensagem de que um
novo estado de harmonia era possível.
Como
consequência de seus pensamentos e obras, Boehme passou seu último ano de vida
exilado em Dresden, retornando à sua cidade Goerlitz apenas para um adeus final
à vida aos 49 anos de idade. Mesmo assim sendo rejeitado e incompreendido pelas
autoridades eclesiásticas e pensadores de seu tempo, nos dias atuais, as obras
de Boehme são estudadas e admiradas por diversas comunidades de
espiritualistas, filósofos, teosofistas e místicos em geral. Entre suas obras
importantes, podemos citar algumas: A
aurora nascente, A sabedoria divina, A revelação do grande mistério, os três
princípios da essência divina, Quarenta questões sobre a alma, A encarnação de
Jesus Cristo, A chave, As confissões e a Vida supra sensível.
Em síntese, a
Cabala cristã apresenta-se, sobretudo no início, como uma tentativa de
elaboração de uma doutrina mais metafísica, que vai além do aristotelismo da escolástica.
Suas numerosas ramificações, que envolvem não apenas Spinoza mas também
Leibniz, Schelling e posteriormente um grande número de pensadores dos
movimentos Humanista e Iluminista. Curioso o fato de que esse movimento
cabalístico cristão ganhou vulto justamente no período que ocorre a Reforma
Protestante na Alemanha, que é essencialmente o berço da mística cristã
européia.
A sabedoria
cabalística detém a chave para o problema religioso da atualidade, porque só
ela favorece a possibilidade de aproximação e diálogo tão sonhada pelos homens
de paz entre as três religiões tradicionais monoteístas: o judaísmo, o
cristianismo e o islamismo. Foi graças à Cabala que o judaísmo se aproximou do
cristianismo e assim também com o islamismo através da distinção clara entre os
conceitos de monoteísmo universalista e monoteísmo mosaico.
Bibliografia:
- GRAAD, A. D., Para compreender a Cabala – 10º EDIÇÃO - Editora
Pensamento – SP – 1993
- SCHOLEM, Gershom, A mística judaica – Coleção Estudos – Editora
Perspectiva – SP – 1972